Responsabilidade Civil Objetiva dos Provedores de Aplicação por conteúdo postado por terceiros à luz e sob a vigência do Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados

Ronetna Klaryssa Pryscilla Vieira Laviola Ribeiro

Advogada. MBA em Gestão e Negócios Jurídicos pela FGV/RJ, com extensão em Direito Empresarial pela Universidade de Coimbra. Pós-graduada em Direito Digital, pela UERJ/ITSRio.

RESUMO

RIBEIRO, Ronetna Klaryssa Pryscilla Vieira Laviola.  A difusão da internet somada à ascensão da telefonia móvel trouxeram uma transformação acelerada na sociedade, e, a comunicação em rede superou fronteiras, tornando-se global. Assim, o acesso à internet foi elevado  ao patamar de direito humano, por oferecer condições insuperáveis para o exercício da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais.  Todavia, o exercício deste direito não seria possível sem a existência de uma série de atores, principalmente privados, que atuam  promovendo o acesso e interconexão das  múltiplas interações virtuais, dentre os quais os provedores de aplicação. Dessa forma, das  novas relações jurídicas, surge, também,  a responsabilidade civil pelos danos causados na internet, sendo a responsabilidade dos  provedores de aplicação por conteúdo postado por terceiros o ponto central deste artigo, que sem a intenção de esgotar o tema, visa trazer reflexões sobre a extensão desta responsabilidade à luz e o sob a vigência do  Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados.

Palavras chave: Responsabilidade Civil dos provedores de aplicação por conteúdo postado por terceiros. Marco Civil da Internet. Lei Geral de Proteção de Dados. Liberdade de Expressão.

 

INTRODUÇÃO

I- Introdução

A difusão da internet, em meados dos anos 1990, somada à ascensão da telefonia móvel, culminou em uma transformação acelerada na sociedade, e nesse caminho foram surgindo novos problemas sociais advindos do seu uso.

Segundo Manuel Castells[1], o grande salto de desenvolvimento da tecnologia da informação “pode, de certa forma, ser relacionado à cultura da liberdade, inovação individual e iniciativa empreendedora oriunda da cultura dos campi norte-americanos da década de 1960”. E, de acordo com o mesmo autor: “A Internet é o tecido de nossas vidas. Se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época a Internet poderia ser equiparada tanto a uma rede elétrica quanto ao motor elétrico, em razão de sua capacidade de distribuir a força da informação por todo o domínio da atividade humana.”

A comunicação em rede  superou fronteiras e tornou-se global, e no dizer de Castells[2] “os valores da liberdade individual e da comunicação aberta tornaram-se supremos.”

Com efeito, o acesso à internet foi tido como direito humano pela ONU[3], por oferecer condições insuperáveis para a inovação, o exercício da liberdade de expressão e de outros direitos fundamentais, como o direito à educação e à livre associação. No mesmo relatório, a ONU  criticou a França e Reino Unido, por terem aprovado leis que bloqueavam o acesso de pessoas que não cumpriam acordos de direitos autorais na web, e, também, países que impediam o acesso às redes sociais para reduzir protestos da população contra governos, considerando o corte ao acesso à internet, independentemente da justificativa e incluindo violação de direitos de propriedade intelectual como “uma violação artigo 19, parágrafo 3º, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.”

Seguindo esta mesma premissa, o Marco Jurídico Interamericano do Direito à Liberdade de Expressão[4] (da Comissão Interamericana de Direitos Humanos) afirma que “a liberdade de pensamento e expressão é a pedra angular de qualquer sociedade democrática”. Estabelecendo o Artigo 13, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o direito de toda pessoa à liberdade de expressão e que este direito compreende “a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”, incluindo, as comunicações, ideias e informações que são difundidas e acessadas pela internet.

Assim, a recomendação dos organismos internacionais é que o acesso e o uso da internet devem ter como norte a primazia do direito à liberdade de expressão.

Todavia, o exercício deste direito não seria possível sem a existência de uma série de atores, principalmente privados, que atuam como intermediários na prestação de serviços promovendo o acesso e interconexão, entre os mais relevantes e populares estão os provedores de serviços de internet, os provedores de hospedagem de sítios de internet, as plataformas de redes sociais, os aplicativos de mensagens instantâneas e os de busca.

Dessa forma, as redes sociais passaram a fazer parte do cotidiano das pessoas, que começaram a criar o hábito de ter a rede social como primeiro site aberto, antes mesmo de verificar e-mails ou notícias[5].

Por conta disso, em 2006, com o explosivo crescimento e influência das redes sociais, a revista “Time” elegeu “você” como a personalidade do ano. Na capa da revista havia um  espelho para edição da “personalidade do ano” e, à época, o seu editor Richard Stengel chegou a afirmar, com relação à imagem, que: “literalmente reflete a ideia de que você, e não nós, está transformando a era da informação”[6], em destaque à  importância das pessoas na fundação e estrutura da democracia digital.

Essa nova sociedade reflete, de certo (ou integral) modo,  a “Sociedade do Espetáculo” enunciada  pelo sociólogo Guy Debord[7],  nos idos de 1967: “toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente se esvai na fumaça da representação.” Debord[8] vai além (como que uma profecia) afirmando que “o alvo é passar para o lado oposto: a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo no real. Esta alienação recíproca é a essência e o sustento da sociedade existente. No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento do falso.”

Pode-se afirmar que a  internet é o palco desta “sociedade do espetáculo”, onde as liberdades  são potencializadas e o  mundo virtual interage, cada vez mais, com a realidade, a dignidade da pessoa humana perpassa a realidade e adentra o mundo virtual, em que pese o Brasil ainda ter um alto contingente de excluídos digitais (25% da população de acordo com dados do IBGE)[9].

Neste aspecto, cabe trazer aqui um interessante  julgado do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro[10], que ao julgar recurso de apelação de um usuário que foi banido de um jogo virtual, firmou o  entendimento de que não se podia  “dissociar a imagem virtual da imagem real”, e, ainda, que “afigurava-se razoável impor à imagem virtual a mesma sorte a que é condenada a imagem humana real, além do que sempre por trás de um participante de competição virtual existe uma pessoa com sentimentos e dignidade.”

Destarte, há danos, então, que podem ocorrer no ciberespaço, não apenas no mundo real, e em muitos casos a responsabilidade dos provedores de aplicação está presente. Sendo assim, todas interações na web estão sujeitas à regulação e limites e  seus atores e usuários devem respeito às leis, ainda mais, quando estão em cheque direitos fundamentais tão caros à nossa recente democracia.

De sorte que, ao lado do direito fundamental à liberdade de expressão, convivem o direito à honra, à imagem, proteção de dados e tantos outros. E, das  múltiplas interações virtuais, surgem novas relações jurídicas, e, também,   responsabilidade civil pelos danos causados na internet, sendo a responsabilidade dos  provedores de aplicação por conteúdo postado por terceiros o ponto central deste artigo, que sem a intenção de esgotar o tema, visa trazer reflexões sobre a extensão desta responsabilidade à luz e o sob a vigência do  Marco Civil da Internet e da Lei Geral de Proteção de Dados.

 II- Responsabilidade Civil dos Provedores de Aplicação no Marco Civil da Internet

A questão da responsabilidade civil dos provedores de aplicação é tormentosa  e complexa, pois por vezes não se estará em debate ofensa diretamente causada pelo provedor, mas sim por terceiros usuários dos seus serviços. Conforme destacado pela Ministra Nancy Andrighi, em seu voto no REsp. 1.735.712-SP[11],   “a dificuldade é ainda mais elevada quando os provedores não exercem nenhum controle prévio sobre aquilo que fica disponível on-line, o que afasta a responsabilidade editorial sobre as informações.”

Por outro lado, não podemos descurar que os provedores de aplicação são controladores de dados, conseguem produzir “bolhas virtuais” de conteúdo personalizado,  de forma a influenciar decisões sem que as pessoas necessariamente percebam [12]  e sem que haja transparência de como os dados coletados são manipulados por algoritmos.

A Lei Federal 12.965, de 23 de abril de 2014,  Marco Civil da Internet, é a lei que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, determinando seu art. 6º que:  “Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural.”

De acordo com o Marco Civil da Internet, existem dois tipos de provedores, existe o provedor de conexão, que é aquele que fornece a estrutura básica para que a pessoa acesse a internet, e existe o provedor de aplicações que é aquele que oferece o conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal conectado à internet, nos termos do inciso VII, do seu art. 5º, cujas funcionalidades podem ser as mais diversas, tais como: serviços de e-mail, redes sociais, hospedagem de dados, compartilhamento de vídeos e etc.

O Marco Civil buscou estabelecer balizas mais claras acerca da responsabilidade tendo como nortes a tutela da inovação e a liberdade de expressão[13]. Desse modo, adotou a posição de que os provedores são meros intermediários, prevendo nos artigos 19 e 21 as formas de remoção de conteúdo e responsabilização dos provedores de aplicação por danos decorrentes por conteúdos postados por terceiros.

Reza o art. 19 que:

“Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura,  o provedor de aplicações de internet  somente poderá ser responsabilizado por conteúdo postado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

Daí vemos que com o Marco Civil da Internet, o qual foi publicado em 23/04/2014 e entrou em vigor 60 (sessenta) dias após esta data,  o termo inicial da responsabilidade do provedor de aplicação foi postergado no tempo, iniciando-se somente após a notificação judicial. Portanto  a exigência de ordem judicial passou a ser tida como requisito  para atrair a responsabilidade do provedor de aplicação, nesta hipótese.

Por sua vez, outra forma de responsabilização por conteúdo postado postado por terceiros é a prevista  no art. 21, que estabelece que:

“O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.”

Todavia, o paragrafo único ressalta que: “A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.

Nos casos de Revenge Porn ou pornografia de vingança, o termo “a quo” para restar caracterizada a responsabilidade subsidiária do provedor de aplicação, nos termos do art. 21, do MCI, será a partir do momento em que receber a notificação da parte que teve sua intimidade violada. Não é necessária ordem judicial.

O art. 21 do Marco Civil da Internet não abarca somente a nudez total e completa da vítima, tampouco os “atos sexuais” devem ser interpretados como somente aqueles que envolvam conjunção carnal, de acordo com entendimento consolidado do Superior Tribunal de Justiça, vez que, o combate à exposição pornográfica não consentida  é a finalidade deste dispositivo legal.[14]

Embora  os art.19 e 21 não mencionem a “culpa”, e mesmo sendo pacífico que entre os usuários de internet e provedores de aplicação exista relação de consumo,  o  Superior Tribunal de Justiça vêm consolidando o entendimento de que a responsabilidade do provedor de aplicação é subjetiva, sendo necessária a comprovação da culpa genérica[15] (que inclui o dolo -intenção de prejudicar- e a culpa em sentido restrito: imprudência, negligência ou imperícia), conforme mencionam Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos[16]:

“Em seus mais recentes posicionamentos sobre o tema, o STJ tem defendido a tese da responsabilidade subjetiva dos provedores justamente pela não remoção do conteúdo reputadamente ilícito quando ciente de sua existência por uma notificação da vítima. Aqui são considerados em conjunto tanto os casos em que o provedor se omite em responder à notificação da vítima ou de forma ativa responde a notificação afirmando que não vê motivos para retirar o conteúdo do ar. Nesses casos a responsabilidade, além de subjetiva, seria também solidária com o autor do dano.”

Cabe destacar, também, que antes do advento do Marco Civil da Internet, a jurisprudência do STJ era no sentido de que o provedor de aplicação passava a ser solidariamente responsável a partir do momento em que fosse, de qualquer forma, notificado pelo ofendido. Assim, bastava a notificação extrajudicial e a inércia do provedor de aplicação em qualquer hipótese. Vejamos[17]:

“…Ao ser comunicado de que determinada mensagem postada em blog por ele hospedado possui conteúdo potencialmente ilícito ou ofensivo, deve o provedor removê-lo preventivamente no prazo de 24 horas, até que tenha tempo hábil para apreciar a veracidade das alegações do denunciante, de modo a que, confirmando-as, exclua definitivamente o vídeo ou, tendo-as por infundadas, restabeleça o seu livre acesso, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano em virtude da omissão praticada.” (Grifo nosso)

Vemos, portanto, que o Marco Civil da Internet deu um passo atrás ao exigir o descumprimento de ordem judicial para ensejar a responsabilidade do provedor de aplicação.

No direito comparado[18], a notificação  (notice and take down – na legislação norte-americana) é exclusivamente extrajudicial, basta à vítima comprovar que deu conhecimento ao provedor internet, por qualquer meio, do fato ensejador da responsabilidade civil, permitindo-lhe agir de modo a coibir tal prática.

Entretanto, é de salientar que nos Estados Unidos há uma isenção geral de responsabilidade do provedor, havendo  somente uma hipótese em que serão considerados responsáveis pelos atos de seus usuários se, uma vez notificados, não removerem o conteúdo questionado relativo à violação de direito autoral[19].

 III – Responsabilidade Civil Objetiva do Provedor de Aplicação – Diálogo de Fontes entre o Marco Civil da Internet, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados

 À medida que as informações sobre os comportamento de consumo dos cidadãos, o monitoramento por geolocalização e outros dados permitem empreender de forma mais eficiente e assertiva no mercado, é preciso repensar o papel de “mero intermediário” do provedor de aplicação.[20]

Ademais,  a vida virtual é uma extensão da vida real, a ponto que a dignidade da pessoa humana alcança e deve ser garantida de forma plena em ambos espaços. Por esse ângulo, Ana Frazão, Gustavo Tepedino e Milena Donato Oliva[21] ressaltam que:

“A dignidade da pessoa humana então se renova, para, por meio de novas manifestações, proteger, diante desse contexto, a liberdade de pessoa humana para ser quem ela é, para livremente construir sua própria personalidade. Nessa toada, o direito à privacidade supera o viés individual e passivo do tradicional “direito a ficar só”, cunhado no final do século XIX para defender a esfera íntima contra as invasões da imprensa, para assumir novo papel, restabelecendo ao sujeito o controle sobre suas informações: passa-se do domicílio à rede, do sigilo à circulação, da proteção estática à proteção dinâmica, de um poder de exclusão a um poder de controle.”

Por outro lado, o risco é elemento próprio da atividade do provedor de aplicação. Neste aspecto, cláusula geral de responsabilidade objetiva inserta no  parágrafo único art. 927 , do Código Civil de 2002, preceitua que:

“(…) Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem

Ao comparar os sistemas de responsabilidade civil português e italiano com o brasileiro, Gisela Sampaio e Rose Meireles  destacam[22]:

“Comparando-se o parágrafo único do art. do art. 927 do Código Civil comesses dispositivos, é fácil perceber a diferença. No nosso sistema, agente não se exime do dever de indenizar nem mesmo se ele comprovar que empregou os melhores recursos disponíveis no mercado para evitar o dano, porque a responsabilidade estabelecida no parágrafo único do art. do art. 927 do Código Civil é objetiva e, portanto, não pode ser afastada nem mesmo com  demonstração de que o agente atuou da melhor forma possível. Afinal, não se discute culpa na responsabilidade objetiva.”

Do mesmo modo, não podemos esquecer que a falta de cumprimento da notificação denota a falha do serviço a atrair a responsabilidade civil objetiva à luz do Código de Defesa do Consumidor.

A norma consumerista consagra a teoria da reparação integral, amplia a teoria do risco e, como regra, disciplina a responsabilidade objetiva no seu art. 14, vejamos: “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.”

Por sua vez, a Lei Geral de Proteção de Dados na Seção II, sob o título “Da Responsabilidade e do Ressarcimento de Danos”, traz  nos artigos 42 a 45 as principais regras de responsabilidade civil que  regem as relações que envolvem tratamento de dados pessoais, cuja ideia do legislador não foi apenas de determinar o ressarcimento do dano, mas preveni-lo.

A LGPD consagra, também, como princípios das atividades de tratamento de dados pessoais, no seu art. 6º, em observância à boa-fé:

“…VII – segurança: utilização de medidas técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou difusão;

VIII – prevenção: adoção de medidas para prevenir a ocorrência de danos em virtude do tratamento de dados pessoais;

…X – responsabilização e prestação de contas: demonstração, pelo agente, da adoção de medidas eficazes e capazes de comprovar a observância e o cumprimento das normas de proteção de dados pessoais e, inclusive, da eficácia dessas medidas.”

Embora haja controvérsia acerca da natureza dessa responsabilidade, apontando parte da doutrina que a adoção da responsabilidade objetiva inibiria o desenvolvimento e a indústria, que não veria atratividade no desenvolvimento de novas tecnologias de tratamento de dados no Brasil.

Na verdade, observamos que trata-se de uma falsa dicotomia, como bem ressaltado por Maria Célia Bodin e João Quinelato de Queiroz[23]

“Cuida-se de falso dilema pois a história já demonstrou que a adoção dos modelos de culpa presumida ou de responsabilidade objetiva, que flexibilizaram a dificuldade da prova da culpa, não limitaram o desenvolvimento de novas tecnologias. Ao contrário: assegurou-se o pleno desenvolvimento tecnológico e industrial e os custos dos modelos de responsabilização objetivos, em especial nas relações de consumo, foram incorporados pelo mercado sem prejuízo do ressarcimento das vítimas de danos injustos, implementando-se o modelo solidarista de responsabilidade fundado na atenção e no cuidado para com o lesado.42 Ademais, já pontuava Rodotà, o argumento de eventual aumento dos custos de proteção dos dados pessoais para as empresas não é decisivo, vez que não se pode estimar que interesses ligados à proteção de dados pessoais dos titulares sejam de status inferior aos interesses empresariais.”

Destarte, é de se  reconhecer que a responsabilidade civil na LGPD é objetiva, independente de culpa, em razão da natureza das atividades desenvolvidas pelos agentes ter o potencial de gerar de riscos aos usuários. Sendo, a nosso ver, ainda mais latente a responsabilidade objetiva dos provedores de aplicação que lidam com dados sensíveis, definidos pela LGPD como “dado sobre origem racial, étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico” (art. 5º, II).

A esse respeito, a professora Caitlin Mulholland[24] assevera que:

“Conclui-se, portanto, que apesar do uso de expressões diversas em sua redação, tanto o artigo 42, quanto o artigo 44, da LGPD, adotam o fundamento da responsabilidade civil objetiva, impondo aos agentes de tratamento a obrigação de indenizar os danos causados aos titulares de dados, afastando destes o dever de comprovar a existência de conduta culposa por parte do controlador ou operador. Fundamenta esta conclusão o fato de que a atividade desenvolvida pelo agente de tratamento é evidentemente uma atividade que impõe riscos aos direitos dos titulares de dados, que, por sua vez, são intrínsecos, inerentes à própria atividade e resultam em danos a direito fundamental. Ademais, tais danos se caracterizam por serem quantitativamente elevados e qualitativamente graves, ao atingirem direitos difusos, o que, por si só, já justificaria a adoção da responsabilidade civil objetiva, tal como no caso dos danos ambientais e dos danos causados por acidentes de consumo. “

Nesse “diálogo das fontes”, teoria que foi introduzida no Brasil pela professora Cláudia Marques, a qual o Min. Joaquim Barbosa fez menção, em seu voto, no julgamento da ADI 2.591, o atual paradigma é de que as normas caminhem lado a lado,  aplicando-se ao mesmo tempo na mesma situação jurídica, sendo que, de forma prioritária ou subsidiária, vejamos[25]:

“[…]Entendo que o regramento do sistema financeiro e a disciplina do consumo e da defesa do consumidor podem perfeitamente conviver. Em muitos casos, o operador do direito irá deparar-se com fatos que conclamam a aplicação de normas tanto de uma como de outra área do conhecimento jurídico.

Assim ocorre em razão dos diferentes aspectos que uma mesma realidade apresenta, fazendo com que ela possa amoldar-se aos âmbitos normativos de diferentes leis”.

E, observa:

“[…]Não há, a priori, por que falar em exclusão formal entre essas espécies normativas, mas, sim, em influências recíprocas, em aplicação conjunta das duas normas ao mesmo tempo e ao mesmo caso, seja complementarmente, seja subsidiariamente, seja permitindo a opção voluntária das partes sobre a fonte prevalente”

Dessa forma, o art. 19, do Marco Civil da Internet, deve ser relido à luz do Código de Defesa do Consumidor e da Lei Geral de Proteção de Dados, que não exigem do titular dos dados a notificação judicial para exercício dos seus direitos e consagram a facilitação deste exercício, não havendo razão de existir óbices para tal, ainda mais, quando se tratam de dados sensíveis. Nesse passo, não há como afastar a  responsabilidade civil objetiva dos provedores de aplicação pelo risco da atividade.

Note-se que os princípios explícitos no próprio MCI, como na LGPD e CDC não estão adstritos às suas próprias normas, mas, sobretudo, na  Constituição que os fundamenta e que confere unidade a todo sistema jurídico.

Neste sentido, com muita precisão Alinne Arquete Leite Novais[26] leciona que:

“Após a análise da evolução do direito como método, concluímos que atualmente convivemos com um sistema aberto, cuja unidade é conferida pela Constituição. Um sistema em que a atividade em que a atividade do aplicador da lei não é apenas subsuntiva, no sentido de submeter um caso concreto a uma norma. Na verdade, a atividade deste aplicador é muito mais ampla, já que pode e deve ele buscar a solução para  o caso submetido à sua apreciação no sistema como um todo, buscando formar seu juízo de valor sempre com base nas normas constitucionais. Portanto, o papel da Constituição ultrapassa o papel de mera instituição de programas para a elaboração da legislação ordinária e para a atividade do Estado. Agora, a Constituição é encarada como um corpo de normas jurídicas, de aplicação direta às relações interprivadas” (grifos nossos).

 Assim, o direito fundamental à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, previsto no art. 5º, X, CF, prevalece como fundamento do indivíduo para determinar e controlar a utilização dos seus dados, em que pese tais direitos não serem absolutos e ilimitados, seus limites encontram-se nos demais direitos constitucionais. Ao passo que as limitações a direitos e garantias individuais precisam seguir os parâmetros constitucionais de excepcionalidade, razoabilidade e proporcionalidade.

Nessa toada, o  Supremo Tribunal Federal, em decisão histórica proferida em 07/05/2020,  reconheceu  a proteção de dados pessoais como direito fundamental autônomo no julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 6387, 6388, 6389, 6393, 6390, suspendendo a aplicação da Medida Provisória 954/2020, que obrigava as operadoras de telefonia a repassarem ao IBGE dados identificados de seus consumidores de telefonia móvel, celular e endereço durante a situação de emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19). E, mesmo diante da situação de emergência, os Ministros decidiram pela suspensão da eficácia da MP 954/2020, levando em consideração o fundamento quanto ao risco de ferir o direito fundamental à proteção de dados, à privacidade e à autodeterminação informativa, a ponto de gerar um regime de incompatibilidade com a proteção de tais direitos fundamentais[27]

Tema a ser enfrentado, em breve, pelo STF será a Repercussão Geral 987[28], na qual se questiona a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet. Esperamos que seja dada interpretação conforme com redução de texto, declarando-se a inconstitucionalidade da expressão “após ordem judicial específica”, possibilitando a partir daí uma interpretação compatível com a Constituição.

IV- Conclusão

A tecnologia trouxe inúmeras facilidades, mas, por outro lado, a pessoa humana está  cada vez mais exposta à violação da sua intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, bem como, do sigilo de seus dados e da autodeterminação informativa.

Os provedores de aplicação estão entre as empresas mais valiosas do mundo, e seus produtos são os nossos dados. Cada compartilhamento de conteúdo ou a cada vídeo assistido, os algoritmos utilizados por esses sites são alimentados dessas informações para oferecer conteúdo personalizado.

Na prática, as redes sociais já censuram o conteúdo que o usuário terá acesso, para exibir apenas o que considera relevante para determinada pessoa, sem que haja a devida informação de como os dados estão sendo manipulados.

Dessa forma, não faz sentido exigir que somente com o descumprimento de ordem judicial o provedor de aplicação seja responsabilizado, quando seria bastante a notificação extrajudicial e seu descumprimento, ainda mais considerando a morosidade da justiça frente à velocidade da internet. Enquanto se desenrolam os trâmites judiciais, fake news, campanhas de desinformação, de difamação,  de cancelamento e etc propagam-se de forma assustadora causando graves danos.

A Carta Magna de 1988 dispõe em seu inciso III, do art. 1º, que constitui fundamento do Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana,  e no inciso I, do art. 3º, que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Assim sendo, não se pode pensar numa sociedade livre, justa e solidária onde a vulnerabilidade do usuário da internet, equiparado a consumidor, é potencializada ao extremo. É preciso equilíbrio nessa balança!

Esperamos, portanto, que, diante da ponderação de valores fundamentais ao Estado democrático de Direito, prevaleça  a dignidade da pessoa humana.

REFERÊNCIAS

[1]             .  Castells, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade / Manuel Castells; tradução Maria Luiza X. de A. Borges; revisão Paulo Vaz. – Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p.7.

[2]             .   Idem, p. 8.

[3]             .  Nações Unidas. Conselho de Direitos Humanos. Promoção, proteção e gozo dos Direitos Humanos na Internet:  https://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/17session/A.HRC.17.27_en.pdf. Acesso em 01/12/2020.

[4]             .  CIDH. Relatório Anual 2009. Relatório da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão. Capítulo III (Marco Jurídico Interamericano do Direito à Liberdade de Expressão). OEA/Ser.L/V/II. Doc. 51. 30 de dezembro de 2009. .

[5]             . A Evolução das Redes Sociais e seu impacto na sociedade. Disponível em: https://canaltech.com.br/redes-sociais/a-evolucao-das-redes-sociais-e-seu-impacto-na-sociedade-parte-3-109324/. Acesso em 30/11/2020.

[6]       .Notícia divulgada em 18/12/2006. Disponível em:: http://g1.globo.com/Noticias/Tecnologia/0,,AA1391119-6174,00 APOS+YOUTUBE+TIME+ELEGE+VOCE+COMO+PERSONALIDADE+DO+ANO.html  Acesso em 06/12/2020.

[7]             .  DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Tradução Estela dos Santos Abreu. Ed. Contraponto. Rio de Janeiro, 1997. p.13.

[8]     Idem, p. 16.

[9]             .    Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2020/04/29/internet-chega-a-4-em-cada-5-lares-diz-ibge-excluidos-digitais-somam-45960-mi.htm. Acesso em 06/12/2020.

[10]          .  TJRJ. Apelação Cível  0033863-56.2016.8.19.0203.24ª Câmara Cível. Relator Des. Alcides da Fonseca Neto. Julgado em 16/10/2019.

“APELAÇÃO CÍVEL. INDENIZATÓRIA. BANIMENTO DE JOGOS VIRTUAIS. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE CONDUTA DESLEAL DO CONSUMIDOR/JOGADOR. DANO MORAL CONFIGURADO. Participante de jogos virtuais que, em razão de alegada atitude ilícita no jogo, foi permanentemente banido do site. Conduta ilícita não comprovada. Sentença de parcial procedência que determinou o reingresso do Autor no jogo, preservadas as características que seu personagem possuía no momento do banimento, com a reativação de sua conta, conforme requerido. O mundo virtual demanda hoje novas formas de soluções dos problemas da vida, ou mesmo que sejam aplicadas às novas realidades soluções pré-existentes. Por isso a internet e sua realidade virtual não podem ficar de fora dessa interação. Levando em conta uma interpretação evolutiva, afigura-se razoável impor à imagem virtual um valor, como ocorre com a imagem humana real, notadamente em casos concretos semelhantes, além do que sempre por trás de um participante de competição virtual existe uma pessoa com sentimentos e dignidade, pelo que resta claramente configurado dano moral, posto que o nome virtual do Autor permaneceu à vista de todos como banido.” (grifos nossos)

[11]          . STJ. REsp 1.735.712-SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 19/05/2020.

[12]          .  Exemplo disso é o polêmico caso envolvendo o Facebook e Cambridge Analytica. A Cambridge Analytica obteve ilegalmente dados de cerca de 50 milhões de perfis de usuários do Facebook nos Estados Unidos,  e usou para traçar perfis psicológicos detalhados de eleitores na campanha pró-Trump, e no Reino Unido, na campanha pró-Brexit. Notícia disponível em: https://www.techtudo.com.br/noticias/2018/03/facebook-e-cambridge-analytica-sete-fatos-que-voce-precisa-saber.ghtml. Acesso em 30/11/2020.

[13]          . Souza, Carlos Affonso. Lemos, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação, Juiz de Fora:Editar Editora Associada Ltda, 2016, p. 65.

[14]          . STJ. REsp 1.735.712-SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 19/05/2020

[15]          . Tartuce, Flávio Direito Civil: Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil – v. 2 / Flávio Tartuce. – 14. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2019, p.519.

[16]          . Carlos Affonso Souza e Ronaldo Lemos. Marco civil da internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar Ed., 2016, p. 81

[17]          .  STJ. REsp 1.406.448/RJ. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgado em 15/10/2013

[18]         . Artigo 19 do Marco Civil da Internet gera impunidade e viola a Constituição. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-nov-21/guilherme-martins-artigo-19-marco-civil-internet-gera-impunidade. Acesso em 02/12/2020.

[19]          . Souza, Carlos Affonso. Lemos, Ronaldo. Marco civil da internet: construção e aplicação, Juiz de Fora:Editar Editora Associada Ltda, 2016, p.73.

[20]          . Bioni, Bruno Ricardo Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento / Bruno Ricardo Bioni. – 2. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 47.

[21]          . KONDER, Carlos Nelson. “O tratamento de dados sensíveis à luz da Lei 13.709/2018”. IN.Frazão, Ana. Tepedino, Gustavo. Oliva, Milena Donato.Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no direito brasileiro. — 1. ed. — São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2019. p. 399.

[22]   UEDES, Gisela Sampaio da Cruz; MEIRELES, Rose Melo Vencelau, “Término do tratamento de dados”, IN: Tepedino, Gustavo; Frazão, Ana; Oliva, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Editora RT: São Paulo, 2019, p. 231.

[23]          . MORAES, Maria Celina Bodin de; QUEIROZ, João Quinelato de. Autodeterminação informativa e responsabilização proativa: novos instrumentos de tutela da pessoa humana na LGDP. IN: Cadernos Adenauer, volume 3, Ano XX, 2019.

[24]          . MULHOLLAND, Caitlin. A LGPD e o fundamento da responsabilidade civil dos agentes de tratamento de dados pessoais: culpa ou risco?. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/329909/a-lgpd-e-o-fundamento-da-responsabilidade-civil-dos-agentes-de-tratamento-de-dados-pessoais—culpa-ou-risco. Acesso em: 05/12/2020.

[25]          . STF, ADI 2.591 DF, Relator Ministro Eros Grau, julgado em 07 de junho de 2006, publicado no D.J. em 29-09-2006.

[26]          . NOVAIS, Alinne Arquette Leite. O Princípio da Boa-fé e a Execução Contratual. Revista dos Tribunais, ano 90, volume 794, dezembro de 2001. p. 151.

[27]          . STF, ADI 6387 MC-REF / DF. Relatora Ministra Rosa Weber. Julgado em 07/05/2020, Publicado em 12/11/2020.

[28]          . STF. REPERCUSSÃO GERAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO 1.037.396 /SP. Relator Ministro Dias Toffoli. Publicado no DJE 04/04/2018 ATA Nº 8/2018 – DJE nº 63, divulgado em 03/04/2018.

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